Ler e interiorizar#2

{perspetiva}

cheguei à conclusão de que sou uma solitária. já tinha dado por mim a falar sozinha na rua, baixinho, assim uma coisa discreta, soprada entre dentes, um pensamento que se soltou e ganhou sonoridade, mas hoje entabulei conversa com um velhote à porta da farmácia e abrandei o passo para o acompanhar e conversarmos enquanto procuravamos o multibanco mais próximo. e sim, quer-me cá parecer que fui eu que meti conversa com ele. lá fomos andando, quase de braço dado, conversando sobre a operação à mão que não correu pelo melhor, o trabalho do filho, a crise, o natal. o senhor era simpático e educado e disse-me que eu era bonita e eu agradeci e desviei o assunto, mas depois repetiu mais duas vezes que eu era muito bonita e ainda bem que encontramos o multibanco que eu já estava a pensar "raios partam o velho que ainda tenho de o empurrar para a estrada". e foi o prólogo e o epílogo duma promissora amizade. minutos mais tarde entro no autocarro ao mesmo tempo que um rapaz igualzinho ao quinn do homeland, tão igual que eu não conseguia tirar os olhos dele, tivesse mais uns centímetros de altura e eu perguntava-lhe pela carrie e se estava em missão. mas nisto acho que o rapaz se apercebeu do meu olhar insistente e não pude deixar de sorrir ao imaginar que, do alto dos seus não mais de 19 anos, devia estar a pensar qualquer coisa como "raio da cota, não tira os olhos de mim, deve ser uma cougar". na verdade isto é como dizia o saramago "das habilidades que o mundo sabe, essa ainda é a que faz melhor: dar voltas". e a vida tem a estranha capacidade de em segundos nos colocar na ponta oposta da cadeia alimentar, chamemos-lhe assim.